Quando o Brasil foi redemocratizado em 1985, os cinemas de rua cariocas fechavam vertiginosamente. O desmonte cultural e a censura que levaram à decadência importantes cineclubes para as gerações anteriores dispersou os cinéfilos fluminenses e dificultou seu acesso aos cinemas independentes. Mais de 73% dos domicílios brasileiros já tinham televisão em casa e os shoppings tomavam o lugar das galerias tradicionais, enquanto os multiplex tomavam o das pequenas salas de projeção.
O metrô de Botafogo, a essa altura, havia sido inaugurado há quatro anos e se tornado o epicentro da locomoção na Zona Sul do Rio. Agora apenas uma curta viagem de integração ou de carro era necessária para pegar o metrô até o Centro da Cidade, e a alta circulação na região tornou o bairro um dos pontos mais fortes da região. Apesar da área degradada pelas obras de construção da metrovia, havia nele dois cinemas: o antigo Cine Capri e um chamado Botafogo, do grupo Severiano Ribeiro. A circulação do cinema alternativo na cidade dependia da agenda inconstante dos cineclubes, que faziam sessões em diferentes dias da semana e em diferentes cinemas cada vez. Mas, em 12 de novembro daquele ano, nasceria um espaço para o público carioca ávido por novidades assistir a um cinema à margem do círculo blockbuster hollywoodiano.
O “Exército de Brancaleone” – assim se nomeavam os cinéfilos-empreendedores Adriana Rattes, Adhemar Oliveira, Ilda Santiago, Nelson Krumholz e Marcelo França Mendes, em homenagem ao filme de Monicelli – resolveu organizar um cineclube de programação e locação fixas, para o qual conseguiram patrocínio do Banco Nacional. Assim arrendaram o Capri, a sala de cinema ao fim da galeria 88 na Rua Voluntários da Pátria. Após inúmeros brainstorms e consultas a amigos para o batismo da sala, estavam entre os nomes mais votados “Cineclube Pau-Brasil” e “Cineclube Mico Leão Dourado”, misturando identidade nacional com defesa das nossas fauna e flora. Os nomes foram desestimulados pelos patrocinadores, e acabou ficando Estação de Cinema Botafogo, em referência à estação de metrô que efervescia diariamente.
O Estação, como ficou carinhosamente conhecido pelos flumineses cinéfilos, inaugurou com a estreia do internacionalmente premiado Eu Sei que Vou te Amar, de Arnaldo Jabor, no Rio de Janeiro. O evento reuniu desde os atores protagonistas Fernanda Torres (premiada com a Palma de Ouro em Cannes pela interpretação no filme) e Thales Pan Chacon aos funcionários do salão de beleza, da pizzaria e da lojinha de estofados da galeria – que hoje em dia são as outras duas salas de projeção e a cantina do atual Estação Claro Botafogo. A alegria democrática do primeiro evento foi um presságio do marco que o grupo viria a estabelecer na cultura cinéfila carioca e brasileira.
Godard, Pasolini e Bergman eram nomes famosos no imaginário cinéfilo mas cujos filmes passavam apenas ocasionalmente em projeções da Cinemateca do MAM ou do Cine Paissandu, lugares que perderam força ao longo da década de 1970. Havia uma lacuna de quinze a vinte anos entre a “geração Paissandu” de 1968 e os cinéfilos oitentistas, que, em grande parte, não tiveram acesso às produções desses cineastas. Dali em diante, tais obras encontrariam no Estação sede certa para semanas de exibição, para novos títulos ou para mostras e retrospectivas que fariam a sala de 300 lugares lotar o dia inteiro. Além do cinema europeu e norte americano independente, a os cinéfilos poderiam assistir ao brilho dos cinemas nacional, asiático e latino-americano.
O tom de novidade a esses nomes já consagrados se dava pelo público comum de cinema do país ter se acostumado a consumir apenas nomes mais conhecidos do “cinemão”, e se tornava mais resistente a produções estrangeiras independentes. Wim Wenders, Pedro Almodóvar, Jim Jarmusch, Werner Herzog, entre outros tantos nomes, eram ainda desconhecidos na cidade, e exibi-los era uma aposta. Que deu muito certo. Até futuros cults, então recentes, como Blade Runner (Ridley Scott, 1982) ou Fome de Viver (Tony Scott, 1982), eram exibidos uma ou duas semanas em cinemas mais comerciais e depois paravam nas prateleiras da distribuidora. Apenas com o sucesso da reapresentação desses filmes com os frequentadores do Estação, foi compreendida a sua preponderância naquele momento.
Como a licença de exibição das obras tinha um tempo limitado (por volta de cinco anos), também era exclusividade de lá uma sessão de “Última Chance”, em que títulos mais queridos poderiam ser reassistidos anos depois da estreia, e pouco antes do vencimento. Era também uma regra de mercado que, após essa expiração, as cópias fossem destruídas, pois os grandes estúdios desejavam espaço para os novos filmes. Entretanto, havia um mercado paralelo com depósitos repletos de cópias não destruídas em Santo Cristo e na Gamboa. Dessa forma, a equipe conseguia o material para realizar retrospectivas de diretores como Alfred Hitchcock e Luís Buñuel, cujas obras tinham expirado licença há muito tempo.
Pelos anos 1990, eram feitas pelo Estação as primeiras mostras de cinema coreano, chinês, japonês e tailandês no Rio de Janeiro. A “geração Paissandu” tinha uma programação usualmente eurocentrada, salvo exceções como o Cinema 1 de Alberto Schatovsky (que hoje trabalha com o grupo), cujas atividades precisaram ser encerradas por conta da cada vez mais ferrenha ditadura militar. Já sob novo contexto, os filmes asiáticos eram trazidos com o apoio da embaixada dos respectivos países, pelos departamentos de difusão cultural. Outras distribuidoras alternativas já tinham surgido agora, também começavam a buscar esse tipo de título, e uma miríade de obras estrangeiras e independentes chegava ao circuito.
A programação era feita pelos sócios e a interação com o público era direta. Se a fila lotasse, era comum que marcassem uma sessão logo depois para os que não conseguiram entrar. O sucesso gerou a curiosidade de exibidores comerciais, que visitavam o estabelecimento tentando entender por que lotavam o Estação os títulos que, em seus cinemas, não duravam. A fluxo dos frequentadores era tão consistente que o grupo Estação abriu cinemas em outros bairros do Rio – Centro (Paço Imperial e Cine Odeon), Flamengo (Estação Paissandu), Copacabana (Novo Jóia), Ipanema (Laura Alvim e Estação Ipanema), Leblon (Estação Leblon), Gávea (Estação Net Gávea) e outras cinco salas em Botafogo (hoje, Estação Net Rio) – e de São Paulo – Consolação (Cine Belas Artes e Cine Studio Alvorada) e Bela Vista (Top Cine).
Com a expansão, atividades paralelas foram necessárias. O pequeno espaço que a crítica de cinema tinha nos jornais – ainda menos sobre filmes de arte, aos quais os críticos não tinham acesso antes da estreia – levou o grupo a montar um pequeno jornal, o Tabu. Nele, um pensamento teórico sobre cinema tinha espaço verdadeiro e o veículo fomentava debate e espírito analítico sobre a programação. Nessa época, foram pioneiros ao abrir uma videolocadora ainda no período de surgimento do vídeo. Lá os filmes eram catalogados por gênero, mas alguns ficavam na estante “Filmes do Estação”, expressão que se espalhou por todo o país. Se algum filme era de difícil classificação, caía sob a alcunha. Muitos cinemas de pequenas cidades já tinham fechado, e lá a sétima arte sobrevivia apenas em videolocadoras. Cartas do Brasil todo pediam por “Filmes do Estação”, e o Exército de Brancaleone decidiu abrir a distribuidora com o famoso nome para atender a essa e a outras demandas.
Mas nem tudo eram flores. O cinemas atravessaram graves recessões econômicas, e o exemplo mais simbólico provavelmente é a inauguração do Cine Paissandu no dia do anúncio do Plano Collor. Segundo Nelson Krumholz, a obra ainda estava terminando, e não havia dinheiro para comprar os últimos pregos. O evento aconteceu mesmo assim, o filme foi exibido gratuitamente e os os espectadores combinaram que voltariam para doar o valor possível. Algumas salas foram fechadas, outras vendidas, mas quatro unidades de Botafogo, Ipanema e Gávea permanecem efervescentes de novo cinema independente, e o grupo Estação mantém sua importância na circulação de cinema alternativo em outras chaves.
A história do grupo Estação é também a história de um dos maiores festivais de cinema brasileiros e do mundo. Tudo remonta a 1989, quando a Mostra Banco Nacional de Cinema nasceu para preencher o vazio que deixava a migração do FestRio, antes sediada no Estação Botafogo, para Fortaleza. Em 1999, a mostra se fundiu com o Rio Cine Festival (surgido em 1984), e assim nasceu o Festival do Rio. Ao longo dos anos, o evento projetou-se vertiginosamente, com projeções lotadas de incansáveis cinéfilos entre os cinemas de Ipanema e Cinelândia, e até mesmo de Niterói. Muitos faziam uma verdadeira maratona entre esses cinemas. O Festival é um pólo do cinema brasileiro contemporâneo e de valorização da produção independente nacional e internacional, onde são exibidos filmes recém passados por Cannes, Berlim e Locarno, e cuja curadoria reflete as principais tendências temáticas e estéticas da sétima arte em âmbito mundial. Já vieram ao evento apresentar seus filmes diretores como Lucrecia Martel, Costa-Gavras, Dario Argento, Leos Carax, Im Sang-soo, João Pedro Rodrigues, Masahiro Kobayashi, Louis Malle, Carlos Saura e John Waters. Foi em uma edição do Festival que Almodovar se encantou pelo Rio. Atores como Jeanne Moreau, Samuel L. Jackson, Marisa Paredes, Forest Whitaker, Willem Dafoe, Charlotte Rampling, Ricardo Darín, Danny Glover, Harvey Keitel, Helen Mirren e Isabelle Huppert. também já participaram da festa, esperada de braços abertos anualmente pelo mundo do cinema.